quarta-feira, 11 de março de 2009

Um sabor a pouco e um querer mais. - Helena Magalhães

Crónicas do deserto: 4º dia – Um sabor a pouco e um querer mais.

A última alvorada vestiu-se olheirenta, mas feliz como um cuco, resmoneando as inusitadas falhas de água da albergaria, mal explicadas e menos aceitáveis, e nem a risota nem as piadas de ocasião conseguiam espantar a certeza de que a “expedição” estava a caminhar para o fim. Este era o último dia. O primeiro da convicção de que a próxima já estará alinhavada. O chefe-da-caravana, o insubstituível luso-angolano nascido no Namibe, cuja paixão pela terra a todos contagia, não fez orelhas moucas às sucessivas provocações do “a-seguir-onde-vamos?”, e mentalmente foi riscando um novo, o próximo, percurso. Adiante, que a caravana está em movimento.
No centro da cidade o carnaval do Lubango soltava-se ao som de ritmados corpos e batuques, num registo de máscaras e fantasias autóctones, deliciosamente primitivas e genuínas. Eflúvios de cor e som que se entranharam nos corpos ainda amolecidos que se iriam fazer à estrada, se Benguela se alcançaria já pela noite, Luanda lá para mais de mil quilómetros e vinte horas depois.
Repete-se o troço de cerca de 90 km de asfalto que se estende à saída do Lubango e mergulha-se em pleno mato, no país profundo de picadas, kimbos de cubatas e palhotas, gente que se queda e move como só em África: é uma outra insustentável leveza do ser! Que insidiosamente nos corrompe e seduz. Fica-se apegado..
O perfil cinza-azulado das montanhas que ora se mostram ora se agacham na imensidão da savana, farta cabeleira verde capim solto à brisa, árvores que se agigantam a esparramar folhagem, e donde a onde só os cocurutos das cubatas se adivinham, e a picada segue rasgando a terra vermelha, revoadas de pó nas curvas e contracurvas, o colorido dos panos e dos frutos na quase solitária venda improvisada à sombra do caminho.
Por aqui é território das mulembas, árvore real angolana dos mitos e das tradições, senhoras de grande porte e impressionante figura. Num país de expressiva cultura falocrática, cuja expressão mais prosiaca é a preocupante violência doméstica que afecta sobretudo as mulheres, não é de todo garantido que a matriarca não faça impôr a sua força e vontade. Porque são de força e vontade as mulheres desta terra: labutam, acartam, amanham a terra, o comer, os filhos e o sustento da família. E em nome dos costumes levam pancada. E continuam de pé, quais mulembas. Mulembas, essas grandes árvores redondas, uterinas, soltando as longas tranças de folhagem em jeito de quem dá colo, e a gente sente que a terra é delas e delas emana o poder da natureza. Talvez por isso o majestático embondeiro, senhor de grande garbo e beleza, se não afoite por estas bandas, num recatado pacto de respeito territorial. Há-de chegar-se mais acima, lá onde o planalto se começa a esgueirar para o mar, e há-de chegar de mansinho, ora mirando ora se quase encostando à mulemba, juntos soberbos, antropomórficas figuras povoando e rendilhando as lonjuras de céu e terra , anunciando ela as despedidas, mostra-se arisca, arredia, e ele vai continuando quase só, cada vez mais só, hierático, garbosamente erguendo a cabeça de trunfa estendida, até que se acomoda em seus senhoriais domínios. E nos há-se guiar até Luanda, sem sobressaltos.
É já madrugada alegre quando o grupo se despede nas imediações da ponte sobre o Kuanza.
Dos vinte e oito aventureiros que se haviam juntado para descer ao deserto do Namibe sobram vinte e cinco promessas de se voltarem a juntar para a próxima expedição. Pelo caminho ficaram carros e tripulantes , destes os três e respectiva viatura que avariou logo no primeiro dia, mas foi e veio um bom quarteirão de entusiasmo, tenacidade, resistência e muita, muita mesmo, alegria solidária.
Cumpriu-se a “profecia”: ficou um sabor a pouco e um querer mais.

Luanda, 24 Fev. 2009

terça-feira, 3 de março de 2009

O rio das sete e meia - Helena Magalhães







Crónicas do deserto: 3º dia – O rio das sete e meia.

O sol vai chegando envergonhado, sorrateiro, a luz coada entre as nuvens vai sorvendo o céu estrelado, o acampamento abre os olhos e espreguiça-se. Em breve vai abalar, emaladas as tendas, e a caravana vai rodar ainda deserto adentro, para sul, antes de iniciar a volta de regresso.
Há no ar transparente que se respira como que um formigueiro de ansiedade, um querer tudo ver, sentir, nada perder, que contrasta com a serenidade que nos incha o peito, olhos e alma lavados, pequenos grãos de areia rolando na imensidão do deserto, “em bebedeiras de azul”, diria o poeta, por certo bêbedos de êxtase e emoção. Sabíamo-nos a começar o fim do devaneio e a sofreguidão ia soltando esporas.
Sulcam-se os trilhos de tremedeira constante em espasmos de poeira, ali as gazelas que de longe nos miram em poses estudadas e logo esvoaçam a galope, aqui a surpresa do desfile da paisagem, qual passarela onde se sucedem estilos e modelos. São as rochas em arrojados equilíbrios, a penedia matizada de tons e formas onde tufos de verde se encarrapitam, as dunas que não se alcançam nem as areias, agora pedras e pedregulhos, e logo dum lado a encosta perlada de pompons verdes a fazer inveja às pintas sardentas da que do outro lado se perfila. Mudam-se as cores, mudam-se as plantas, muda-se o chão que se pisa e a vista em redor, só as espinheiras, arbustos que parecem espanadores enterrados de cabo para o ar, vão saltitando ao longo do percurso, pequenas e grandes, sempre a deixar escorrer uma rodelinha de sombra, abrigo de gente e de bichos.
O embasbacamento havia de nos pegar sem aviso quando nos deparámos com o rio caudaloso que corria lesto e cantante a rasar o sopé de imponente falésia, vale adiante, na margem uns repolhudos tufos verde-alface, na outra banda flutuava o esqueleto de uma qualquer viatura que não se percebia como ali tinha vindo parar. Este era o rio que tinha chegado às 7h30 da manhã, tal qual!!, rio de aguada, fruto das chuvas caídas algures a montante. Se mais não chovesse daí a dois dias já não haveria rio. No leito seco atravessa a “estrada” por onde se escoam mercadoria e gado que, como se viu, podem ser apanhados na correnteza, daí a carcaça flutuante. Disto nos foi dando conta um camionista de ocasião, nativo, posto em sossego até que o rio se fizesse de novo estrada. Para ele tão natural como a natureza. E nós varados! E os geólogos, de gosto ou de formação, que andavam de catarpácio em riste a conferir mapas e traçados a exultar satisfação. É o deserto que não pára de nos surpreender. E tudo quanto se possa dizer ou escrever fica aquém. Este deserto é homem de paixão vivida, corpo a corpo, olhos nos olhos, um outro modo de revisitar o “império dos sentidos”. Vive-se, frui-se, recorda-se para sempre.
A jornada estava longe de chegar ao fim, rumar à lagoa do Arco era o destino não sem antes uma abordagem ao oásis atravessando um riacho, filhote do rio das sete e meia, água a cobrir os rodados e nem todos os carros a meter-se nelas não fosse o diabo tecê-las, que isto de jipes também é consante as posses. Porém da tremedeira, solavancos e sacolejos haveria de ficar registo, uns tantos furos a retardar viagem e a esfalfar os incansáveis tripulantes do carro de apoio. Onde todos ajudam nada custa mas…..
À lagoa de crépon azul-turquesa, onde alcatifas de nenúfares se estendiam, arriba-se por entre vegetação frondosa emoldurada por aglomerados rochosos de cor dourada e muitos arrebiques, que se abrem em arcos torneados a espreitar de cima o lago. Da aridez e imponência do deserto temos lembrança, a inclemência do sol não é fingimento, há um estremecer de brisa na folhagem e um rebuliço de gentes, visitantes e habitantes, poucos, a família do curador, meninos alinhados como ervilhas de greiro, todos tão seguidos e tão pequeninos, que a mãe de pronto arruma para a fotografia. E são sorrisos e adeuses e a alegria de receber, e a nossa de sermos recebidos.
De volta aos trilhos, que as picadas do deserto são cheias de personalidade, a caravana toma de novo o rumo da cidade do Namibe, onde se aportará pelas cinco da tarde em ânsias de petisqueira e bebidas frescas. Faz-se poiso na esplanada de um restaurantezinho em frente ao mar, que nos haverá de brindar com um corropio de carnudos caranguejos da terra, ou seja, do mar dali, que apajearam um inesquecivelmente sápido arroz de lagosta com feijão, nunca antes visto, porém supimpa. Foi fartar vilanagem!
Até que a noite se abeirou, a caravana se pôs de novo em marcha, aconchegados os corpos e regalados os espíritos, rumo ao Lubango, curvas da Leba no entretanto. E neste entretanto haveria de acontecer a última baixa: mais um carro que se ia abaixo, forçado a tratos de polé por barrancos, picadas, trilhos e solavancos, muitos. Continuam inabalavelmente em pista os vinte e cinco “expedicionários” que resistiram aos abalos do primeiro dia. Abatem-se os carros, encolhem-se as bagagens e reacomodam-se as gentes.
Tudo se resolve, menos a espera na beira da estrada, horas a fio, por um reboque cujo rebocador motorista se deve ter perdido algures nas tasquinhas das curvas da serra. Ou lá o que foi. Do grupo avançaram alguns para o hotel, na esperança, vã, do banho retemperador, que de nada valia ficarem todos na berma da estrada a ver esperar. E o dia seguinte já estava a começar.

Namibe, 23 Fev 2009

Fados e cantigas à volta da fogueira. - Helena Magalhães


Crónicas do deserto… - 2º dia: Fados e cantigas à volta da fogueira.


Já a alvorada se derretia nos luzeiros da manhã quando a caravana se recompôs dos desencontrados imprevistos da véspera. Era a serra da Leba a desafiar tudo e todos num cenário de cortar a respiração, tal a imponência, tal a majestade, tal a beleza, tal a justeza dos tamanhos e proporções. É a mãe natureza que nos confronta com a nossa pequenez. Sem apelo nem agravo.
Magnânima, a serra se nos desnuda em requebros e curvas voluptuosas , na cabeça a falésia emoldurada em geometrias de tons ocres e pastel , o torso reclinado em tufos encaracolados de verdes em matizes, aconchegado entre os picos violáceos que de largo se recortam na linha que separa o céu, se derramando em sustenidos de barrancos e ravinas até se aninhar no regaço do Namibe, terra dos mucubais, homens e mulheres trajando panos e adereços, os troncos nus, olhos cintilantes nos rostos de exótica beleza, posam para as fotos, dá-se-lhes dinheiro, mas são eles quem de verdade compra; compram o nosso civilizado espanto. Adiante temos encontro marcado com o Deserto, o senhor que a Leba recebe e acalenta. Numa recatada intimidade que os nossos assarapantados olhos apenas adivinham.
A estrada, qual fita de nastro a bordar ziguezagues na paisagem, esgueira-se formosa e segura até à cidade, a do Namibe, moçoila fresca e de cara lavada debruçada sobre a baía, e também os navios no porto, onde os barcos e pescadores, onde as areias brancas e cabriolas de meninos, onde o passeio marinho se afeita ao mar que mais parece um manto de crépon azul estiraçado. Aqui haveremos de voltar com maior ripanço.
Às portas do deserto, por alturas do plateau que se enfileira ao longe, a pista vai rasgando as cercanias, e tira-se tempo para o “garimpo” de ágatas e jaspes, que os mais entendidos catrapiscam para surpresa e gáudio dos demais.
Enquanto isso, a caravana vai rolando, a paisagem vai-se desfraldando em austeridades de viços e plantas, e há cubatas e palhotas que se avizinham e gente que se adivinha, e os redondos sensuais das dunas que se deitam p’ras bandas do mar, e os esculpidos nos rochedos, variados na forma, no tamanho e na cor. Sempre pasmosos! E lá está o território da famosa e mal encarada welwitschia, espécie de fóssil vivo, planta apenas existente no deserto do Namibe. Das welwitschias diz-se, e não será o caso, que são carnívoras, “comem” insectos, mas aquelas apararentes bocarras escancaradas em beiços negros que nem borracha de pneus mais parecem capazes de comer uns bons bifes. Fica a piada, espicaço de imaginação.
A aguardada surpresa do oásis vem-nos ao caminho, e mesmo assim o pasmo, que os caprichos da natureza póem de rasto os humanos arrebites, é o rio e a lagoa que refrescam a frondosa vegetação onde se abrigam as machambas dos mucubais ali acantonados em palhotas bem organizadas no terreno. Sem eufemismos ou figuras de estilo , em bom rigor e à letra, é o viver-no-meio-do-nada! Os mucubais aqui vivem e pastoreiam o seu gado, agarrados à sua terra e às suas tradições. E à nossa perplexidade dizem nada.
Pelas 6h da tarde o acampamento está montado na largueza do chão só antes pisado pelas pachorrentas vacas, quiçá outros bichos, que se nos acercam impávidas e serenas, e por ali se hão-de acomodar, que nem encenação de presépio, até à manhã do dia seguinte. Por enquanto carros e tendas se arredondam à volta da fogueira que se há-de acender. Saem uns a apanhar lenha, outros se quedam só embasbacados, a mirar os longes e os ruídos do silêncio que se impôem O sol vai-se afastando em pinceladas de cor e pasmo. O ar cálido e transparente vai roçagando as almas e os corpos. Em breve um fogo se incendeia entre um rodado de pedras.
São as febras no braseiro, é o tacho do macarrão que se intromete, é o todos comem e bebem num não distinguir de farneis, é o sentimento de pertença a espreitar no brilho dos olhos, é o todos juntos num só contentamento, é o gozo escorreito da liberdade a céu aberto. Um céu baixinho, veludo liso, onde rebrilham astros e estrelas nunca antes tão claramente vistos. É o soltar das gargantas e do riso. É o fado que se escoa de vozes abaritonadas não antes suspeitadas. São os versos e as redondilhas de que só se lembra a metade. É o fado e as cantigas à volta da fogueira.

Namibe, 22 Fev. 2009