terça-feira, 3 de março de 2009

O rio das sete e meia - Helena Magalhães







Crónicas do deserto: 3º dia – O rio das sete e meia.

O sol vai chegando envergonhado, sorrateiro, a luz coada entre as nuvens vai sorvendo o céu estrelado, o acampamento abre os olhos e espreguiça-se. Em breve vai abalar, emaladas as tendas, e a caravana vai rodar ainda deserto adentro, para sul, antes de iniciar a volta de regresso.
Há no ar transparente que se respira como que um formigueiro de ansiedade, um querer tudo ver, sentir, nada perder, que contrasta com a serenidade que nos incha o peito, olhos e alma lavados, pequenos grãos de areia rolando na imensidão do deserto, “em bebedeiras de azul”, diria o poeta, por certo bêbedos de êxtase e emoção. Sabíamo-nos a começar o fim do devaneio e a sofreguidão ia soltando esporas.
Sulcam-se os trilhos de tremedeira constante em espasmos de poeira, ali as gazelas que de longe nos miram em poses estudadas e logo esvoaçam a galope, aqui a surpresa do desfile da paisagem, qual passarela onde se sucedem estilos e modelos. São as rochas em arrojados equilíbrios, a penedia matizada de tons e formas onde tufos de verde se encarrapitam, as dunas que não se alcançam nem as areias, agora pedras e pedregulhos, e logo dum lado a encosta perlada de pompons verdes a fazer inveja às pintas sardentas da que do outro lado se perfila. Mudam-se as cores, mudam-se as plantas, muda-se o chão que se pisa e a vista em redor, só as espinheiras, arbustos que parecem espanadores enterrados de cabo para o ar, vão saltitando ao longo do percurso, pequenas e grandes, sempre a deixar escorrer uma rodelinha de sombra, abrigo de gente e de bichos.
O embasbacamento havia de nos pegar sem aviso quando nos deparámos com o rio caudaloso que corria lesto e cantante a rasar o sopé de imponente falésia, vale adiante, na margem uns repolhudos tufos verde-alface, na outra banda flutuava o esqueleto de uma qualquer viatura que não se percebia como ali tinha vindo parar. Este era o rio que tinha chegado às 7h30 da manhã, tal qual!!, rio de aguada, fruto das chuvas caídas algures a montante. Se mais não chovesse daí a dois dias já não haveria rio. No leito seco atravessa a “estrada” por onde se escoam mercadoria e gado que, como se viu, podem ser apanhados na correnteza, daí a carcaça flutuante. Disto nos foi dando conta um camionista de ocasião, nativo, posto em sossego até que o rio se fizesse de novo estrada. Para ele tão natural como a natureza. E nós varados! E os geólogos, de gosto ou de formação, que andavam de catarpácio em riste a conferir mapas e traçados a exultar satisfação. É o deserto que não pára de nos surpreender. E tudo quanto se possa dizer ou escrever fica aquém. Este deserto é homem de paixão vivida, corpo a corpo, olhos nos olhos, um outro modo de revisitar o “império dos sentidos”. Vive-se, frui-se, recorda-se para sempre.
A jornada estava longe de chegar ao fim, rumar à lagoa do Arco era o destino não sem antes uma abordagem ao oásis atravessando um riacho, filhote do rio das sete e meia, água a cobrir os rodados e nem todos os carros a meter-se nelas não fosse o diabo tecê-las, que isto de jipes também é consante as posses. Porém da tremedeira, solavancos e sacolejos haveria de ficar registo, uns tantos furos a retardar viagem e a esfalfar os incansáveis tripulantes do carro de apoio. Onde todos ajudam nada custa mas…..
À lagoa de crépon azul-turquesa, onde alcatifas de nenúfares se estendiam, arriba-se por entre vegetação frondosa emoldurada por aglomerados rochosos de cor dourada e muitos arrebiques, que se abrem em arcos torneados a espreitar de cima o lago. Da aridez e imponência do deserto temos lembrança, a inclemência do sol não é fingimento, há um estremecer de brisa na folhagem e um rebuliço de gentes, visitantes e habitantes, poucos, a família do curador, meninos alinhados como ervilhas de greiro, todos tão seguidos e tão pequeninos, que a mãe de pronto arruma para a fotografia. E são sorrisos e adeuses e a alegria de receber, e a nossa de sermos recebidos.
De volta aos trilhos, que as picadas do deserto são cheias de personalidade, a caravana toma de novo o rumo da cidade do Namibe, onde se aportará pelas cinco da tarde em ânsias de petisqueira e bebidas frescas. Faz-se poiso na esplanada de um restaurantezinho em frente ao mar, que nos haverá de brindar com um corropio de carnudos caranguejos da terra, ou seja, do mar dali, que apajearam um inesquecivelmente sápido arroz de lagosta com feijão, nunca antes visto, porém supimpa. Foi fartar vilanagem!
Até que a noite se abeirou, a caravana se pôs de novo em marcha, aconchegados os corpos e regalados os espíritos, rumo ao Lubango, curvas da Leba no entretanto. E neste entretanto haveria de acontecer a última baixa: mais um carro que se ia abaixo, forçado a tratos de polé por barrancos, picadas, trilhos e solavancos, muitos. Continuam inabalavelmente em pista os vinte e cinco “expedicionários” que resistiram aos abalos do primeiro dia. Abatem-se os carros, encolhem-se as bagagens e reacomodam-se as gentes.
Tudo se resolve, menos a espera na beira da estrada, horas a fio, por um reboque cujo rebocador motorista se deve ter perdido algures nas tasquinhas das curvas da serra. Ou lá o que foi. Do grupo avançaram alguns para o hotel, na esperança, vã, do banho retemperador, que de nada valia ficarem todos na berma da estrada a ver esperar. E o dia seguinte já estava a começar.

Namibe, 23 Fev 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário